Presidente da Federação Portuguesa das Confrarias Gastronómicas

Olga Cavaleiro

"Portugal sabe tão bem."

Presidente da Federação Portuguesa das Confrarias Gastronómicas

Olga Cavaleiro

"Portugal sabe tão bem."

O movimento das Confrarias Gastronómicas em Portugal, cuja Federação agrega hoje cerca de 90 membros, ganhou um novo fôlego nos últimos anos... Por um lado, temos as Confrarias que materializam uma gastronomia altamente reconhecida, como a do Queijo Serra da Estrela, a das Tripas à Moda do Porto, a dos Ovos Moles de Aveiro ou a do Pastel de Tentúgal [ndr: a entrevistada, que preside também a esta Confraria, evita a referência ao longo da conversa, mas para nós é nota incontornável]. Depois temos as Confrarias que procuram resgatar um receituário histórico que deve ser dignificado. E finalmente relevam as Confrarias cujos produtos, ainda que desvalorizados historicamente, vale mesmo a pena reconhecer – três bons exemplos: os chícharos, as abóboras e os nabos, no último caso, recentemente merecedores de um prémio de boas práticas. Tudo isto ilumina o olhar de Olga Cavaleiro, presidente da Federação Portuguesa das Confrarias Gastronómicas, socióloga de formação, com mestrado em História da Alimentação e autora da nossa Cartografia Gastronómica. Vamos lá saber destes nossos sabores e saberes...

 

O que mais a desinquieta, acima de todas as desinquietações, na sua missão, no seu compromisso agregador das Confrarias Gastronómicas em Portugal?

O facto de nós, em bom rigor, não estarmos a aproveitar devidamente este enorme caudal, este incrível fluxo turístico que Portugal está a gerar. E quando penso em desaproveitamento, só posso estar a pensar na falta de estratégias que confiram e reconheçam à gastronomia portuguesa o justo papel de referência primeira no contexto
do nosso produto turístico. Repare que o fluxo de turistas é direccionado para as grandes cidades, sendo muito óbvio que não estamos a aproveitar o enorme potencial da diversidade gastronómica que existe pelo território nacional. Sim, temos turistas, mas ficam em Lisboa, Porto, Aveiro. E o resto do território?

Mas como é que isso se resolve?

A resposta é muito clara e simples. Hoje, quando pensamos em estratégias de promoção do território, não custa nada olhar o contexto e perceber a importância crescente da gastronomia como argumento-chave da marca Portugal. Para isso, há que criar destinos gastronómicos que, pela sua consistência, convençam as pessoas a ficar mais tempo e a visitar mais locais. O que é importante é o que nós fazemos com esse valioso activo que é a nossa diversidade e singularidade gastronómica. Estaremos nós prontos para este desafio de promover devidamente o que nos caracteriza? Ou é mais fácil seguir o caminho tantas vezes repetido?

Pode desenvolver um pouco mais…

Com certeza. Vejamos o exemplo da realidade concreta do País. Quando um município está apostado em atrair procura turística, o que habitualmente faz olhando a gastronomia regional e local é, na maioria dos casos, realizar e promover uma feira ou um festival. Será isso o mais adequado? Não tenhamos dúvidas: esse modelo está visto e gasto. Ou definimos e colocamos em marcha um programa susceptível de atrair e estabelecer cumplicidade com os diferentes públicos que constituem o universo-alvo, ou então dificilmente conseguiremos ser consequentes. Há que criar destinos gastronómicos coerentes, integrados, sustentáveis que agradem e que façam voltar pela riqueza do produto, não só no sabor, mas no seu todo. É preciso alterar o modelo de afirmação da gastronomia e, para além da qualificação dos restaurantes, criar rotas onde o produto seja o protagonista de uma história maior, de uma teia que se liga entre a paisagem, os produtores, os rituais, as tradições, o imenso e imperdível património imaterial.

Quando olha para o mapa das Confrarias, o que lhe salta à vista?

Esse mapa é muito interessante. Desde logo porque reflecte exactamente o que é a nossa gastronomia. E aqui há um País e duas realidades. Acima do Tejo, afirma-se a pluralidade, aquilo a que eu chamo os vários sotaques alimentares. Ou, dito de outro modo, a linguagem gastronómica é a mesma, o sotaque é que vai diferindo. Por exemplo, andamos escassos 5 km e temos uma receita (o arroz doce serve perfeitamente para este exercício) que já não leva ovos; logo a seguir, outra receita diz-nos que o leite já não entra, mas sim a água e os ovos... e por aí adiante. Já abaixo do Tejo, temos como traço marcante a unidade. Ou seja, a unidade de uma linguagem gastronómica absoluta, claramente delimitada, muito característica, quase imutável… É bom de ver que estamos a chegar à gastronomia alentejana ou, melhor dizendo e é justo dizê-lo, seguramente a verdadeira cozinha regional que temos em Portugal. E assim acontece porque estão lá os três tópicos fundamentais: a matéria-prima, as artes culinárias e a identidade. Logo a seguir temos a cozinha algarvia que, nas palavras sábias de José Quitério, é uma alma gémea da cozinha alentejana, ela própria com várias identidades. Já as Ilhas da Madeira e dos Açores são um registo à parte, a merecer outro tipo de observação, reflexão e classificação.

Recuperemos a questão da estratégia (ou a falta dela) para tentarmos perceber que perspectivas se podem abrir à nossa gastronomia…

Para mim, a gastronomia sempre foi um produto estratégico no que respeita à atractividade turística. Mas durante muito tempo apontou-se a diversidade gastronómica como um obstáculo ao nosso pensamento, à nossa visão estratégica enquanto País e, sobretudo, como destino turístico apetecível. Já todos percebemos que a pluralidade é vantagem competitiva e, por isso, argumento distintivo numa estratégia que tem por missão promover Portugal. Pois, nessa diversidade, não deixamos de ter fios condutores, linhas que unem Trás-os-Montes ao Algarve, com expressões diferenciadas depois nas Ilhas. Basta dar um exemplo: as papas de milho são conhecidas por milhos no Norte, papas de carolo nas Beiras, xerém no Algarve e milho frito na Madeira. Ora se percebermos essas linhas de continuidade será possível criar uma estratégia que atravesse Portugal e envolva todos na qualificação dos produtos, levando as pessoas a viver a gastronomia como produto cultural, paisagístico, geográfico, económico.

Há dez anos com responsabilidades no âmbito da Federação Portuguesa das Confrarias Portuguesas, três como vice-presidente e sete como presidente, que importância atribui à gastronomia nas suas diferentes declinações?

Alguém disse, com toda a claridade e brilhantismo, que ‘a gastronomia é a paisagem posta na panela’. Hoje, com toda a minha experiência nesta área tão aliciante e sempre surpreendente, a gastronomia é sobretudo emoção posta na panela. Falo e sublinho o lado da convivialidade. Mesa onde todos somos dignos do que vamos partilhar numa lógica de solidariedade e de cumplicidade autênticas. Mas gastronomia é também produtos tradicionais, genuínos e singulares. E é cultura, tradição pagã ou religiosa que encontramos como a justificação mais clara do que comemos e da forma como comemos. E é alimentação saudável, pois o homem ao fim de todos estes séculos aprendeu a defender-se e a procurar bem-estar. E é reciprocidade – veja-se a interacção e fusão entre alimentos e receituário com outras comunidades de outros países. É um todo que muitas vezes não compreendemos e que designamos como tradição sem muitas vezes perceber o seu significado.

Tradição que, apesar do tempo, chega aos nossos dias com a essência intacta?

Desde que o homem é homem e sentiu necessidade do alimento já mudámos muitas vezes de estratégia. Deixámos de ser recolectores e passámos a ser agricultores. Descobrimos como utilizar o fogo. Fizemos da conservação uma vitória contra a exiguidade dos produtos no tempo. Melhorámos, acrescentámos, reduzimos, fizemos do pouco o muito e no muito celebrámos numa dádiva aos deuses. No meio de tudo isto como definir tradição? Uma tradição é sempre um acumular de pequenas inovações que vão sendo aceites pelo palato e se transformam no gosto dominante. Tradição? Fazemo-la todos os dias. E é no difícil equilíbrio entre o que fomos, o que somos e o que queremos ser que vamos descobrindo as múltiplas identidades gastronómicas. Em tudo precisamos de evoluir e essa tem sido a história da alimentação. De outro modo, nunca teríamos incluído produtos como a batata, o pimento, o tomate, o milho. E nós, confrarias, temos noção dessa passagem para o momento seguinte; no entanto, não nos esquecemos como nos definimos no que temos neste momento, como aquela receita define uma família, uma comunidade, um país. E isso é cultura – e isso é lindo. E isso nunca poderemos esquecer.