Bastonário da Ordem dos Médicos

Miguel Guimarães

"O realista com uma boa dose de optimismo."

Bastonário da Ordem dos Médicos

Miguel Guimarães

"O realista com uma boa dose de optimismo."

À sua volta, há uma aura que não dá para explicar. O domínio quase perfeito do espaço e do tempo e das solicitações sem limite deixam-no, aparentemente, sereno e imperturbável mesmo que se aproximem ventos ciclónicos…. O urologista, que elegeu esta especialidade pela abrangência da área e pelo gosto de operar, não troca o dever da agenda médica por nada deste mundo. Mas, fora da sala de operações, trata de tudo, fala com todos, com um à-vontade e uma presença em todo o lugar que até parece tocado pelo dom da ubiquidade. A pandemia, a vacinação, os grandes temas da saúde, da ciência, do conhecimento, da investigação; o tempo perdido nas outras patologias e que é preciso recuperar o mais rapidamente possível. Há uma infinidade de temas em que o País, político, institucional ou anónimo, faz questão de ouvir Miguel Guimarães, mais conhecido dos portugueses enquanto bastonário da Ordem dos Médicos (OM). Foi o que procurámos fazer, em entrevista exclusiva, numa conversa que, inicialmente prevista para durar 30 minutos, se desfiou ao longo de uma boa hora e meia…

 

Nos raros momentos do dia ou da noite (tanto faz, pois querem dizer o mesmo na vida de um médico), naquele precioso tempo, sempre tão contado, dá consigo a imaginar o ponto final na pandemia? Ou permanecem as reticências, as dúvidas, as interrogações, que não o deixam ver para além da bruma que paira, ainda, sobre Portugal e o mundo?

Eu tenho esperança e acredito que essa bruma se vai dissipar ainda este ano, assim que tivermos os tais 70% da população vacinada a nível global. Mas, certamente que não vamos conseguir resolver o seu impacto lateral. Neste momento, estamos todos a pensar no vírus e a pensar pouco naquilo que será o pós-pandemia – na economia, na educação, na cultura, na ciência… As pessoas não têm noção daquilo que está a ficar para trás em termos de desenvolvimento científico e envolvendo várias áreas, e que não é perceptível publicamente. E isto porque a indústria farmacêutica e os investigadores ao mais alto nível estão concentrados no combate à pandemia. Portanto, temos aqui quase um ano de atraso em relação às outras doenças.

Vêmo-lo presente em cenários tão diferentes, incansável na defesa dos direitos dos médicos, dos profissionais de saúde em todas as áreas de competência; e, acima de tudo, em nome da saúde dos portugueses. Como interpreta a sua missão como bastonário? Tenta cumprir-se como homem de pensamento e de acção?

Na saúde, o nosso pensamento tem de ir para os doentes, para as pessoas que temos de cuidar, esse é o nosso farol. Mas precisamos de fazer acontecer, mesmo que as decisões sejam difíceis e nem sempre pacíficas, até dentro da própria OM. Dou como exemplo o plano de vacinação que estamos a fazer junto dos médicos que, por se encontrarem fora do Sistema Nacional de Saúde [SNS], estão à margem das prioridades da decisão política. A OM tinha a obrigação de os defender, de os incluir. Porque, ao fazê-lo, estamos a defender desde logo também os seus doentes – e são milhares. E eu bati-me pela ideia de que a OM poderia ajudar a task force a encontrar esses médicos e vaciná-los. E foi o aconteceu. Importa ter presente que, infelizmente, o SNS não consegue responder às necessidades de toda a população. Mais de 40% dos portugueses recorre, actualmente, aos serviços de saúde privados e do sector social, para poder ter uma consulta ou fazer uma pequena cirurgia em tempo útil, para fazer exames complementares de diagnóstico e terapêutica. Não por acaso, o próprio SNS tem convenções com o sector privado, para o qual são canalizados cerca de 2.400 milhões de euros, o que representa quase 20% do Orçamento do Estado. E não vem mal ao mundo que assim aconteça, porque, se o SNS não tem capacidade para investir em novos hospitais, fica-lhe mais barato recorrer aos privados, subcontratando os seus serviços. Mas ainda que devamos olhar para o sistema como um todo, importa dar primazia ao serviço público, por ser o garante de que temos justiça naquilo que fazemos, em razão de um princípio de equidade e solidariedade de que não podemos prescindir, conscientes dos muitos portugueses que não têm condições de recorrer ao sector privado ou ao sector social.

Essa clareza assertiva da palavra, por vezes desconcertante, esse registo nada preocupado em transpor as fronteiras do politicamente correcto vem de onde? De uma experiência associativa que começou bem cedo?

As pessoas entram no movimento associativo quando começam a ter uma atitude e uma vontade de ajudar os outros, reflectindo um espírito de colaboração para tentar ajudar a encontrar soluções. E essas pessoas, seja qual for a área em que estejamos a pensar, acabam por ganhar alguma popularidade entre os seus colegas. E a partir daí vão sendo convocadas a participar num compromisso de responsabilidade mais formal. Foi o que sucedeu comigo, inicialmente na Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Devo dizer que a experiência associativa foi muito importante para a minha formação global, desde logo como ser humano. Não tenho dúvida de que o trabalho em equipa é a melhor coisa que existe para sermos mais humanos e mais solidários. Mas também na capacidade de ouvir os outros, de negociar e de tomar decisões. Aliás, se pensarmos concretamente na OM, muitos dos seus anteriores bastonários foram dirigentes associativos.

Que princípios, que valores, que causas e ideais se mantêm intactos desde a sua formação académica e dos quais não admite concessões?

Do que nós, pela vida fora, nunca podemos prescindir é da liberdade de pensar. Em circunstância alguma devemos esconder o pensamento ou ter medo de pensar. Os princípios que têm por suporte a lealdade e a verdade são, também eles, imperativos. Estou a pensar, por exemplo, no relacionamento não apenas em termos pessoais, mas entre instituições. Só assim tudo o que vamos fazendo é susceptível de ter um final feliz. Derivando dos princípios e dos valores para o tópico seguinte da pergunta, eu diria que a minha causa principal como bastonário tem sido lutar pelo acesso dos doentes a cuidados de saúde de qualidade. E o acesso é o primeiro dos mandamentos, a principal medida da qualidade. É interessante notar que, na Europa Ocidental, deveríamos estar a pensar, acima de tudo, nos resultados daquilo que fazemos. Mas a nossa grande preocupação continua a ser o acesso. E assim acontece porque continuamos a ter muitos doentes que não conseguem aceder aos cuidados de saúde em tempo clinicamente aceitável; ou seja, ultrapassando os chamados tempos máximos de resposta garantidos, seja para cirurgias, seja para consultas hospitalares. Entre as causas absolutamente críticas na resposta que estamos a dar à pandemia, temos a ciência e o conhecimento. O que nos pode dar uma ajuda muito boa a vários níveis, desde as cidades saudáveis ao clima. O conhecimento é, de resto, uma causa que venho defendendo em contraponto à pseudociência, e dou como exemplo os grupos de pessoas que tentam desvalorizar o impacto da pandemia, a importância dos confinamentos e, até, a eficácia da vacinação.

Porquê a especialidade de urologia?

Uma nota prévia é devida para corrigir a percepção errada de que concorrer à especialidade é coisa fácil. De resto, o meu caso explica bem essa falácia muito comum (até entre os políticos), quando mais de metade dos médicos avaliados – todos eles formados em Portugal, registe-se – não conseguiu entrar. Fui bem-sucedido e, com isso, abriam-se no meu horizonte de preferências quatro possibilidades: uma, a mais improvável, era oftalmologia, sendo as três mais prováveis a ortopedia, a ginecologia-obstetrícia e a urologia. E porquê estes quatro possíveis caminhos? A razão é simples: todas elas são especialidades eminentemente médico-cirúrgicas e, por excelência, a urologia. Na Alemanha, temos urologistas médicos e urologistas cirurgiões. É, na realidade, uma área que agrega um conjunto muito alargado de patologias. E sendo uma especialidade que me iria permitir operar, algo que sempre me fascinou, aliada a uma grande dimensão médica, foi fácil decidir que o meu futuro iria passar por aí. Olhando para trás, estou muito satisfeito por ter tomado essa opção.

E o sem-número de participações em cirurgia e transplantação, o que fica dessa experiência?

Ainda durante a minha formação em urologia, no Hospital de São João, fui muitas vezes convocado (é mesmo o termo adequado) para os transplantes renais, porque, em boa verdade, havia poucos interessados… Desde logo, porque os transplantes não tinham nenhum aporte económico, não se recebia nada por isso. Depois, porque nos chamavam para fazer uma colheita de órgãos ou um transplante a qualquer hora do dia ou da noite… E eu aceitei tão simplesmente porque gostava da transplantação. O facto – hoje raramente destacado – é que a transplantação nos coloca entre os três países mais relevantes nesta área a nível mundial. No meu caso, levo mais de 600 participações em transplantes. É isto de que eu realmente gosto e, quando acabar a missão como bastonário, vou continuar a fazer. [ndr: esta entrevista acontece a uma sexta-feira; e tanto neste dia, como no fim-de-semana seguinte, Miguel Guimarães estava de chamada ao transplante, no Hospital de São João]

Por falar em experiência, o que o levou à investigação?

A investigação é absolutamente essencial para a formação das pessoas – e não apenas para os médicos. Também aqui, considero que a investigação pode tornar-nos melhores seres humanos e melhores profissionais. E, no nosso caso, melhores médicos. Se assim não fosse, e dando o exemplo da pandemia, não teríamos vacinas por muitos e bons anos… Tudo isto tem a ver com a investigação e com a ciência. Eu próprio, enquanto bastonário, tenho defendido que os médicos deveriam ter um tempo (entre 15 a 20%) do seu horário de trabalho só para se dedicarem à investigação; não falo no âmbito dos doutoramentos, da publicação de trabalhos e de outras áreas de importância inquestionável, mas no sentido de nos avaliarmos e podermos estudar soluções e apontar novos caminhos que nos permitam ter um serviço cada vez mais transformador e de melhor qualidade.

Vê esta pandemia como uma odisseia mais próxima de Homero ou de James Joyce? Ou ambos, cada um à sua maneira, mostram-nos os perigos da existência humana e do mundo que nos rodeia e com o qual tanto implicamos?

Penso que estamos a viver uma odisseia mais próxima de Homero, crendo eu que o regresso a casa – aqui entendido como a retoma da normalidade – será pelas mãos de Athena, a deusa da sabedoria, isto é, com o apoio da medicina e da ciência. Ainda assim, também tenho a expectativa de que, rapidamente, saibamos reinventar esta odisseia, ficando mais próximo da capacidade de adaptação de James Joyce.

Tentando antecipar a passagem do cabo destas novas tormentas, de que dados dispõe a OM em relação ao impacto da pandemia na saúde dos portugueses, a começar nas crianças e nos pais que hoje vivem esta realidade?

O problema da saúde mental é real e grave, afecta as crianças, mas, sobretudo, as pessoas mais velhas e também os profissionais de saúde. Está a afectar os jornalistas, as empresas e um universo muito considerável de desempregados. De diversas fontes e dados a que temos acesso, sabemos que, comparando com 2019, existem atrasos absolutamente brutais no acesso a primeiras consultas, a cirurgias, a exames complementares de diagnóstico e terapêutica, a rastreios oncológicos… e em tantas outras áreas. Só no que toca aos cuidados de saúde primários, foram realizadas, em 2020, menos 6,5 milhões de consultas presenciais; há registo de menos três milhões de consultas, exames e idas aos serviços de urgência dos hospitais; menos 25 milhões de exames complementares de diagnóstico e terapêutica; e menos 450 mil rastreios. Num país com 10 milhões de habitantes, todos estes indicadores são preocupantes. E vão ter um impacto na saúde mental que ainda não conseguimos avaliar, mas que certamente será irreversível nas pessoas mais velhas. E também nas pessoas que estiveram na linha da frente neste combate à pandemia, pois o stress pós-traumático será verdadeiramente transversal, sem esquecer, pensando na sociedade em geral, as pessoas que perderam os seus familiares, sem deles se poderem despedir. Em relação aos pais, gostaria de deixar uma nota: as crianças que viveram o drama da II Guerra Mundial, a elas muito se deve a reconstrução da vida e, acima de tudo, a consciência de que o futuro é possível.

Considera-se um optimista ou, desde logo pela natureza da função, um realista?

Sou mais realista, mas com uma boa dose de optimismo. E para ilustrar isso mesmo, volto ao exemplo do plano de vacinação dos médicos de que já falámos.

Os portugueses estão cansados de tanta (des)informação. É também o seu caso?

Temos de conseguir levar as mensagens-chave, com muita clareza e no tempo certo, aos diferentes sectores sociais, para que o cumprimento dos objectivos do combate à pandemia sejam atingidos com maior eficácia. E isso não tem acontecido porque nos faltam, nos mais diversos níveis de responsabilidade, porta-vozes que saibam comunicar. Inclusivamente, deveríamos envolver gente que entenda a linguagem da blogosfera e das redes sociais, numa estratégia de comunicação que não deixe ninguém à margem. Ainda sobre o tema da desinformação, há muito a corrigir para além da questão da pandemia. Quando, por exemplo, se diz que no nosso País existem muitas barreiras no acesso à formação na área da medicina, isso é mentira. Portugal é dos países da Europa e da OCDE que mais médicos forma por 100 mil habitantes. Acresce que somos um dos dois maiores fluxos de migração médica no contexto europeu: por um lado, há o movimento que transita da Europa de Leste para a Europa Ocidental; e por outro, o fluxo que sai de Portugal para Espanha, França, Reino Unido, Alemanha e Suécia, entre outros destinos. E isso acontece mais ainda com os enfermeiros, mas também com os médicos. Gente que, formada em Portugal, tem de procurar melhores oportunidades noutros países.

Repegando na pergunta inicial, acredita que o cabo da boa esperança será dobrado já em 2021?

Pela doença em si, penso que ainda em 2021 vamos dobrar o cabo da boa esperança. Quero com isto dizer que acredito que a COVID-19 vai ser controlada, mas não desaparecer. E esse controlo, certamente muito maior, irá permitir-nos fazer uma vida mais normal. Já em relação aos efeitos laterais na economia, na educação, nas áreas de intervenção social, na ciência e, obviamente, na saúde, cujos números apontados nesta nossa conversa falam por si, tudo isso vai exigir mais tempo. Tempo para recuperar as pessoas e os indicadores que tínhamos antes da pandemia, não apenas em saúde mental, mas igualmente nas doenças oncológicas, entre tantas outras patologias.