CEO da Empresa de Desenvolvimento e Infra-Estruturas do Alqueva

José Pedro Salema

"Assegurar o futuro sem restrições de água"

CEO da Empresa de Desenvolvimento e Infra-Estruturas do Alqueva

José Pedro Salema

"Assegurar o futuro sem restrições de água"

A questão da água é indissociável da emergência climática que estamos a viver. “Entre as notas prévias que devemos alinhar ao reflectirmos sobre o tema, importa clarificar, logo à partida, que o problema está não tanto na falta de recursos, mas na dificuldade de distribuição”, sublinha José Pedro Salema. Concretizando os seus argumentos, “houvesse energia ilimitada, poderíamos ter água onde fosse necessária – até no deserto; a questão prende-se sempre com os custos económicos e financeiros, que em muitos casos seriam incomportáveis”. Com maior frequência nos últimos anos, é um facto que o mundo se debate com situações de extrema gravidade, ora por excesso ora por falta de água. Hoje como ontem, desde sempre, a Humanidade tem no controlo do ciclo da água um desafio permanente. “E assim é porque todos os dias necessitamos de beber água, e produzir e consumir alimentos provenientes da agricultura, também ela dependente deste recurso”


A água está no topo das preocupações mundiais, suscitando pontos de vista plurais e soluções tantas vezes discutíveis, o que nem sempre convirá ao esclarecimento das opiniões públicas. Da realidade planetária aos desafios que se colocam a Portugal, o que considera oportuno destacar?

Mais recentemente, mesmo nas regiões estáveis por definição em termos de suficiência de água – com a precipitação a acompanhar a temperatura – começam hoje a surgir fenómenos associados à emergência climática: o facto de continuarmos diariamente a explorar o petróleo em quantidades absurdas e a emitir para a atmosfera números insuportáveis de CO2, tudo isso tem consequências, como o surgimento de mais fenómenos extremos de que são exemplo os furacões de grande intensidade. Passando para a realidade portuguesa, a variabilidade é uma característica do nosso clima semi-árido, em que a precipitação não ocorre quando a temperatura sobe; ou seja, além de não chover no Verão, o cenário é muito instável. Isso é óptimo se pensarmos nas idas à praia, mas péssimo quando falamos em agricultura de sequeiro.

Como avalia a gestão da água no quadro das relações Portugal-Espanha?

Na comparação com vários países, a nossa disponibilidade hídrica chega a ser invejável. A questão é que essa disponibilidade depende, cerca de 50%, de Espanha. Significa isso que, num ano em que os nossos vizinhos são afectados por uma crise, metade dos nossos recursos cai a pique. Depois, temos a tal instabilidade do clima mediterrânico a ditar as suas leis: é normal haver períodos de tempestade, períodos em que passamos 1-2 meses sem uma gota de água, e depois temos invernos em que chove dia sim, dia não. Agora, o que não deve ser desfocado é o quadro de bom relacionamento ibérico nesta matéria, estabelecido pelo tratado sobre os rios internacionais assinado em 1968 [Convénio entre Portugal e Espanha para Regular o Uso e o Aproveitamento Hidráulico dos Troços Internacionais dos Rios Minho, Lima, Tejo, Guadiana, Chança e Seus Afluentes e Protocolo Adicional] regulada pela Convenção de Albufeira desde 2000. E este acordo dá garantias de que volumes mínimos de água chegam cá. As notícias avançando que os espanhóis incumprem a sua parte habitualmente não são rigorosas. Convém esclarecer que os acordos prevêem situações de excepção – além de que os caudais são dependentes das precipitações – e o facto é que nos últimos tempos a excepção está a converter-se em regra. Portanto, não há incumprimento formal. Dando o exemplo do Guadiana, tivemos este ano uma situação excepcional, o que quer dizer que o volume que os espanhóis teriam de nos canalizar é de 63 hectómetros cúbicos – por ano, a afluência média aproxima-se dos 2.000 – mas dificilmente ultrapassará os 200 hectómetros cúbicos, pelo que a diferença diz tudo.

No contexto de Alqueva, que retrato emerge destes últimos dez anos?

Quando cheguei à EDIA, há nove anos, a missão que me foi dada era muito clara: acabar as obras e garantir que o Alqueva não seria um “elefante branco”. Um desafio sem dúvida importante, tanto mais que estávamos em cima dos prazos de execução e a adesão dos agricultores ainda era muito incipiente. Hoje, é nítido que esse desafio está superado e a promoção do empreendimento bem-sucedida, de tal forma que temos de ser muito cuidadosos para não sermos vítimas do nosso sucesso. Portanto, o propósito agora é consolidar e assegurar que os Clientes continuarão, no futuro, a ser servidos sem restrições. O Alqueva está atualmente a regar 120 mil hectares. De acordo com um estudo que promovemos já em 2022, haverá cerca de 15 mil empregos criados directamente por este empreendimento [o que representa um aumento de 45% face aos números apurados no estudo do professor Augusto Mateus, realizado em 2015] envolvendo a agricultura e a agroindústria e excluindo todo o ecossistema que está a montante e a jusante, por exemplo, o turismo e as empresas de prestação de serviços – que são imensas, se pensarmos apenas nas que estão ligadas ao regadio – e estes dados ainda não constam das grandes estatísticas, desde logo porque é grande a mobilidade das pessoas: muitas trabalham cá na maior parte da semana, mas a sua referenciação está associada à sede das empresas ou à localização dos escritórios centrais.

É razão para argumentar que o Alqueva continua a ser estratégico?

Sem dúvida. Esta infra-estrutura o que faz é regularizar um rio que tem uma variabilidade de “1” para “100”, na lógica de fazê-lo correr “20” todos os dias. E isso só é possível com uma barragem muito grande: o Alqueva tem capacidade para reter 4.150 milhões de m3 (ao nível de pleno armazenamento) e já esteve cheio várias vezes, sendo 2014 o ano mais recente em que tal se verificou. Nos 20 anos de Alqueva [fechou as barragens em Fevereiro de 2002], a albufeira trabalhou sempre no seu terço superior. Embora dependente da Natureza, o facto é que Portugal preparou-se bem, tendo trabalhado para garantir que este empreendimento de fins múltiplos cumpre a sua missão – lembro que o Alqueva não serve só a agricultura, tem outras responsabilidades, nomeadamente, abastecimento público, produção de energia, turismo e desenvolvimento regional. É interessante notar que a produção de energia e o regadio podem aqui concorrer em harmonia, utilizando (leia-se consumindo) a mesma água. No início deste ano, por motivos de contingência, a indicação do Governo foi de que, temporariamente, não se podia turbinar mais água [produzir energia] em algumas barragens. Em Alqueva, tudo isso foi muito bem resolvido com um sistema reversível que permite turbinar sem gastar água. Uma segunda barragem que temos associada retém os volumes turbinados, que depois podem ser devolvidos, por bombagem, ao reservatório principal.

Novas culturas aportam novos desafios ao empreendimento do Alqueva. Que mudanças se perfilam?

Segundo os cientistas, podemos contar até ao fim do século com uma redução de afluência de água entre 20-25%. Resulta daí que só podemos gastar aquilo que está concessionado. Quando nos dizem, aqui e ali, que devíamos alargar a concessão, a nossa resposta é muito clara: a água é a que há, temos de ser muito prudentes. Este ano retirámos do sistema 570 milhões de m3, quando o nosso limite são 620 milhões, enquanto há dez anos retirávamos 30. Crescemos quase vinte vezes apenas numa década. A velocidade com que os agricultores foram abraçando o regadio superou a que imaginávamos nos estudos iniciais. Depois do olival, cuja mancha actual era inimaginável nos primeiros tempos, surgiu o amendoal: há cinco anos estava a despontar e hoje representa já 25 mil hectares. E este é outro desafio: enquanto a oliveira tem baixas exigências hídricas, a amendoeira é o oposto.

O futuro sustentável é aqui também um desafio bem presente. Em que se traduz nas suas principais implicações?

Só este ano a nossa factura eléctrica associada a custos com infra-estruturas para elevação de água será superior a 40 milhões de euros – apenas num local, o gasto mensal é da ordem dos 2,2 milhões por mês. O problema, neste caso, estaria bem resolvido se conseguimos mobilizar recursos renováveis. E é nesse sentido que estamos a trabalhar. Enquanto empresa de desenvolvimento que chama a si o compromisso da descarbonização, a EDIA sabe que tem de produzir uma parte importante da energia de que precisa. A par dessa dimensão de cidadania responsável, temos o risco da exposição aos mercados da electricidade, para cujas consequências temos vindo a alertar há anos. Além do trabalho que estamos a fazer no aproveitamento da energia solar, as nossas atenções estão voltadas para a aposta em centrais fotovoltaicas junto aos locais de consumo, com a utilização de tecnologia flutuante: neste campo, a nossa independência energética está actualmente nos 12%, e o caminho é por aqui, rumo aos 100% até 2030! Noutro domínio, o da valorização dos resíduos agrícolas e agro-industriais, está a ser um caso de sucesso, e exemplo de economia circular, o conceito que lançámos em 2019, a que chamámos URSA [Unidades de Recirculação de Subprodutos de Alqueva]. A primeira dessas unidades de compostagem está instalada numa propriedade do Estado – a Herdade da Abóboda, em Serpa. E a ideia é que exista uma constelação de unidades de proximidade para que os agricultores tenham sempre uma por perto (máximo 5 km de distância, levando subprodutos e trazendo composto), de modo a que os custos logísticos sejam baixos. Com a URSA, o objectivo é vir a compostar 40% do bagaço de azeitona produzido na região, qualquer coisa como 400 mil toneladas, valor incorporado com outro tanto de restolho, folha, material linhoso, que possa ser misturado e transformado num adubo orgânico que fica na região, sem impactos ambientais.

As Centrais de Dessalinização têm sido notícia recorrente no espaço mediático. Como vê Portugal nesta equação?

A EDIA tem sido ouvida como consultora no processo, dando os seus pareceres. Há um projecto para o Algarve e intenções de considerar outras zonas do litoral, que, do nosso ponto de vista, é onde fará algum sentido. Temos reservas se estivermos a pensar em todas as utilizações possíveis. Considero ser uma solução para zonas onde haja conflito de uso, pela grande pressão urbana e agrícola, onde haja poucos recursos hídricos e em geografias mais perto do mar. Agora, não é solução para todo o território, quando temos recursos superficiais muito mais baratos de dominar. Uma água superficial pode custar um décimo face à água dessalinizada.