Ambientalista e conservacionista

Helena Freitas

"Só a dimensão humana nos aproxima da Natureza"

Ambientalista e conservacionista

Helena Freitas

"Só a dimensão humana nos aproxima da Natureza"

Na Universidade de Coimbra, reparte as suas competências pela Ecologia e a Biodiversidade, área esta que lhe dá também uma cátedra na UNESCO, onde engloba ainda a Conservação para o Desenvolvimento Sustentável. Próximo da palavra conservação temos o termo conservacionista, nome do movimento com o qual se alinha a nossa entrevistada pela sua posição muito clara em defesa dos recursos naturais do Planeta. Quando falamos com Helena Freitas, ouvimos a voz de um futuro que não deixa margem de hesitação, nem reticências, diante das grandes decisões que interpelam o presente de Portugal e do Mundo.


A COP 15, Conferência das Nações Unidas sobre a Biodiversidade, realizada em Dezembro de 2022, no Canadá, estabeleceu, naquele que é considerado um acordo histórico, a meta de 2023 para conservação de 30% dos ecossistemas naturais e restauração de 30% dos ecossistemas terrestres e marinhos degradados. Nesse pressuposto, que leitura faz das acções prioritárias?

Vejamos, como ponto de partida, o que dizem os números relativamente à urgência da acção climática. Segundo os dados mais recentes, concretamente o Relatório Intergovernamental da Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, o aquecimento global chegará a 1,5ºC entre 2030 e 2035, sendo de frisar o registo preocupante que a temperatura já subiu, em média, 1,2ºC face aos índices pré-industriais. O impacto deste aumento da temperatura planetária é brutal, com uma cascata de consequências tremenda, o que nos mobiliza, a todos sem excepção, nas esferas pública e privada, a restruturar a nossa forma de viver, a preparar e defender as comunidades mais vulneráveis perante tamanha urgência. Vamos ter milhões de pessoas expostas a temperaturas muito altas. Isso quer dizer ondas de calor, falta de água e, em contraponto, cheias… com tudo o que isso condiciona, desde logo, a produção alimentar. Na urgência de sermos capazes de promover a transição climática, é forçoso garantirmos a transição global para as novas energias. Quando digo global, refiro-me em especial aos países que, mesmo em posição geográfica favorável, lutam desesperadamente com problemas de dívida e, por isso, com incapacidade real de fazerem essa transição.

Nesse sentido, a recente cimeira para um Novo Pacto Financeiro Global, promovida por Emmanuel Macron, surgiu como ‘convocatória extraordinária’ para se avançar mais rapidamente em soluções concretas…

Sim, pese embora não tenha sido possível chegar a acordo em matéria de imposto sobre a emissão de gases com efeito de estufa provocada pelo transporte marítimo, nem os prometidos 100 mil milhões de dólares, a transferir pelo FMI para os países mais carenciados, tenham visto luz verde. Seja como for, esta cimeira não deixou de ser um sinal muito claro ao sistema financeiro do problema a que me referi no início da nossa conversa: as implicações tremendas das alterações climáticas, designadamente na criação da riqueza global. Insisto neste ponto: vamos ter mesmo de ajustar a nossa vida a uma maior sobriedade e de encontrar formas céleres de capacitar o mundo para a transição energética, sem perder de vista a garantia de que a justiça social é um imperativo categórico que a todos se coloca.

Como avalia a resposta portuguesa a esta agenda de prioridades em nome do futuro?

No que tem a ver com a questão energética, considero as duas últimas décadas um tempo de acção positiva em Portugal. A trajectória que percorremos é parte de um caminho sem retorno, sob pena de deitarmos tudo a perder. Ainda durante esta década, não nos poderemos desviar da meta de conseguirmos afectar 80% da factura energética às renováveis, registo muito interessante e que nos posiciona claramente no pelotão dianteiro. Já na perspectiva da adaptação climática, num cenário para onde convergem realidades da maior relevância como os nossos recursos naturais, os nossos sistemas florestais e a nossa produção agrícola, em bom rigor não estamos preparados como devíamos. E essa impreparação vai sentir-se cada vez mais na geografia a que pertencemos – a região mediterrânica – com grandes efeitos gerados pelo aumento da temperatura global. A começar no impacto directo sobre a actividade metabólica das plantas, com mais biomassa disponível nas florestas para arder. No regime hídrico, as alterações vão significar a necessidade de identificar e apostar em culturas agrícolas ajustadas à água disponível. Por todas as razões, tem de ser agilizado todo o trabalho de adaptação global face às ondas de calor e não dá para adiar mais uma estratégia de transição climática, a um tempo, ambiciosa e consequente. Claro que o investimento público tem de ser indutor dessa mudança, mas não é suficiente. É crucial um maior envolvimento das comunidades e, nesse pressuposto, incrementarmos os índices de literacia ambiental, climática e energética, junto de um universo de pessoas cada vez mais significativo. O mundo mudou. Temos de ir interiorizando isso. Os cenários climáticos são muito sérios. A ciência já vem alertando há mais de trinta anos para estas questões críticas. Agora, chegámos à evidência total. Volto ao ponto da necessidade inadiável de Portugal avançar com uma estratégia de adaptação do País e das nossas comunidades, nas cidades e nos territórios rurais, porque é de uma emergência que se trata. Por outro lado, também é verdade que no domínio da governança global e dos mecanismos já existentes, é possível fazer mais – muito mais.

Tendo como pano de fundo a relação que se estabelece entre a crise climática e a crise ecológica, olhemos para o nexo clima-biodiversidade. Que importância atribui ao restauro ecológico e às soluções com base na Natureza para o cumprimento das metas climáticas?

Trata-se de uma questão da maior relevância, justamente tendo esse nexo como ponto de partida para reflexão. Repare, não vamos resolver a questão climática se não trabalharmos – e bem – no que está a acontecer. Falo da biodiversidade, valor maior que estamos a perder a um ritmo avassalador. E isso tem consequências. Tenhamos presente que a biodiversidade é matéria-prima dos ecossistemas. E já agora, os ecossistemas são os sistemas que suportam a vida tal como a conhecemos. Em boa verdade, precisamos de valorizar a biodiversidade, fazendo-o de forma conjugada e bem articulada com a resposta climática. Por outras palavras, é naturalmente bem-vinda uma agenda de restauro da natureza que, entre outras prioridades, permita travar este problema gravíssimo que é todos os dias trazermos mais territórios para uma agricultura intensiva que é condenada no curto prazo. Os números são bem eloquentes: desde 1970, já perdemos cerca de 70% da nossa biodiversidade, o que, volto a usar o adjetivo, é verdadeiramente brutal.

Considerando a pertinência do tema nas mais recentes Conferências das Partes (COP) da Convenção-Quadro das Nações Unidas, que comentário lhe suscita o financiamento bancário e o investimento das empresas na protecção da biodiversidade?

Estamos perante algo absolutamente determinante. Só vamos conseguir a tão necessária justiça social se, de facto, o sistema financeiro e, concretamente, a banca acomodarem bem esta nova taxonomia de sustentabilidade. Esta é uma dimensão crítica irrefutável. Na agenda global que a todos nos compromete, os valores da Humanidade têm de lá estar bem inscritos. Quando nos dissociámos da Natureza, também nos afastámos de nós próprios. E nada nos aproxima mais da nossa dimensão humana do que a Natureza. Devemos olhar para tudo isto, concretamente para este afastamento, no quadro necessário de uma lógica mais colaborativa, que o mesmo é dizer mais próximo de um mundo novo, mais justo, mais inclusivo, mais sustentável. O financiamento bancário e o investimento das empresas têm de afinar por aí. Não há volta a dar, se queremos ser futuro.