Presidente da Confederação Empresarial de Portugal

António Saraiva

"Portugal tem tudo a ver com o Mundo"

Presidente da Confederação Empresarial de Portugal

António Saraiva

"Portugal tem tudo a ver com o Mundo"

“O panorama mundial é impressivo. Guerras em curso, conflitos latentes, alterações climáticas, seca extrema, abrandamento económico, aumento das taxas de juro, inflação em alta… e tantas outras preocupações. António Saraiva, não deixando de ser realista, acredita na capacidade das empresas portuguesas em dar a volta e sair, sem traumas profundos, deste olho do furação que vem arrastando o mundo para a chamada ‘tempestade perfeita’.

Na agenda do presidente da CIP há propostas apontadas para sede parlamentar. E outras para sede de concertação social. O destaque envolve três reformas com carácter de urgência (Administração Pública, Justiça e Fiscal) e um acordo de competitividade e rendimento ao longo da legislatura, em nome do desenvolvimento económico de Portugal


Como estão a reagir as empresas portuguesas perante os cenários políticos, económicos e financeiros globais?

Neste tempo de grandes incertezas e velozes alterações, gostaria de destacar desde já a enorme capacidade que as nossas empresas vêm demonstrando para conseguirem entrar em novos mercados, oferecendo novos produtos e serviços que, ao acrescentarem valor, se afirmam competitivos.

Prever, antecipar, planificar… Em que medida está a ser mais difícil conjugar estes verbos?

É muito complicado. A cada dia que passa, não sabemos o que nos espera ao acordar. Basta atentarmos no incremento impressionante dos custos do gás natural. Sobre esta questão, convirá dizer que Portugal evoluiu – e bem – em matéria de energias alternativas, ainda que, sem dúvida, estejamos longe de cobrir as necessidades de consumo. Seja como for, num esforço assinalável de descarbonização, fechámos centrais a carvão e continuamos – também acertadamente do meu ponto de vista – a não advogar a aposta no nuclear. Na perspectiva da qualidade do ar que respiramos e da sustentabilidade do mundo em que vivemos, o caminho é por aqui, pese embora uma série de desigualdades gritantes que traduzem um manifesto cinismo político mundial: na Terra, esta casa comum dos vários continentes, descarbonizamos a cozinha com regras muito exigentes, mas o quarto e a sala de estar parecem configurar um mundo à parte em termos de emissões de carbono, desproporção que ao final do dia se reflectirá nos índices de competitividade. E num mundo cada vez mais competitivo, em que os blocos económicos mundiais lutam para serem mais atractivos junto dos consumidores, aqueles que vão perdendo competitividade por factores que lhes são externos têm hoje acrescidas dificuldades. Entretanto, saídos das dívidas soberanas e do período de austeridade, começámos a ter alguma esperança perante os sinais de retoma, para depois, abruptamente, cairmos na crise da pandemia de COVID-19, que nos levou ao encerramento de portas de algumas actividades durante ano e meio, a reduções significativas de consumo em várias tipologias empresariais, sobretudo serviços e indústria. Também aqui, voltámos a acreditar em melhores dias, mas isso acabou por ser sol de pouca dura, confrontado que foi o mundo com a invasão da Ucrânia por parte da Rússia, numa guerra sem fim à vista.

É a ‘tempestade perfeita’?

Exactamente. Faço notar que estes são tempos de contra-senso subvertendo completamente a lógica em que desenvolvemos as nossas teorias. Como a de Darwin, em razão de estarmos permanentemente a adaptar-nos a um mundo que todos os dias amanhece diferente, sucedendo-se os contrastes e as divergências entre os blocos económicos, mas também a definição de metas a várias velocidades – e não apenas no que respeita à descarbonização. E assim se adensa a imprevisibilidade das nossas vidas e, inevitavelmente, das nossas empresas. Os empresários, insisto neste ponto, não têm outra opção que não seja continuar a incrementar a qualidade dos seus serviços e a diferenciação dos seus produtos, procurando adaptar-se às novas realidades e incorporar os novos conceitos que vão emergindo.

O prenúncio de recessão técnica na Alemanha é, bem vistas as coisas, um factor de preocupação adicional…

Se entendermos a economia portuguesa como uma realidade micro, e entendermos as economias europeia e mundial como realidades macro, a passagem do ‘furacão’ é dolorosa em todas as latitudes, embora com impactos diversos. O aumento exponencial dos custos energéticos ganha especial significado tendo em conta a dependência da União Europeia [UE] e especialmente dos países do Norte – caso da Alemanha – face ao gás russo. Uma dependência que se estende a outras matérias-primas como sejam as agrícolas, não apenas provenientes da Rússia e da Ucrânia, mas de diferentes economias do continente asiático. Factor de preocupação que joga igualmente em todo este xadrez é a circunstância de a UE, em poucos anos, ter sido responsável por decisões que permitiram a desindustrialização e a deslocalização para outras geografias fora da Europa, em muitos casos sujeitando-nos a políticas e regimes autoritários, com variáveis que não controlamos e das quais estamos ‘reféns’ porque os decisores europeus deixaram-nos cair nessa dependência.

Como vê o eixo franco-alemão neste contexto de grandes desafios?

As ameaças do aumento dos custos energéticos, da ausência e do encarecimento das matérias-primas, da quebra das cadeias de abastecimento, da pressão que os preços e a inflação fazem sobre as taxas de juro – tudo isto leva a que os dois motores que formam, também, o eixo da economia europeia tenham de medir muito bem os passos que vão dar. Se estes motores arrefecerem – e no limite, pararem – é a economia europeia no seu todo que entra em declínio. Por isso, retomando a penúltima questão, devemos estar preocupados com um cenário de recessão na Alemanha, desde logo por se tratar da maior economia no espaço europeu e o terceiro maior exportador mundial. Mas essa preocupação não deixa de percorrer outras realidades, a começar pela França, a braços com graves problemas sociais, e logo a seguir a Itália, cuja instabilidade a vários níveis faz soar os alarmes. Apesar de tudo, do nosso lado constato com agrado, reafirmo, a procura de novos mercados fora do espaço europeu, à frente dos quais o sector metalúrgico e metalomecânico, o mais exportador dos nossos sectores, muito resiliente e heterogéneo, que tem a ver com estruturas metálicas, torneiras, equipamentos para o sector automóvel, designadamente. Neste movimento de outras rotas e destinos para as nossas exportações, relevam depois o têxtil e o calçado, dois sectores tradicionais robustos e muito dinâmicos, a construção e algumas tecnológicas.

No quadro da concertação social, o que move a CIP na nova agenda negocial?

Interpretando as indicações e os sinais que nos vão transmitindo as empresas que representamos nos diferentes sectores de actividade, reitero que o País precisa de realizar três grandes reformas – e não sendo possível a sua aprovação numa legislatura, que se comecem a dar passos para que tal aconteça, no máximo, em duas legislaturas. A saber: Reforma da Administração Pública, Reforma da Justiça e Reforma Fiscal. São, sem dúvida, três reformas imperativas para que a nossa economia tenha sustentabilidade – leia-se futuro. Para que isso suceda, é necessário um quadro parlamentar que esteja disponível e, em termos de representatividade, suficientemente alargado com a indispensável maioria de dois terços dos deputados em efectividade de funções. Esperamos que todos os partidos com assento na Assembleia da República – e não excluo nenhum porque, com maior ou menor expressão parlamentar, todos são representativos da vontade dos portugueses – cumpram o seu papel de assertividade, combatividade e que encontrem condições para trabalharem nestas três reformas. Em nome do nosso desenvolvimento económico sustentável, defendemos que a estabilidade parlamentar terá de ser devidamente acompanhada de estabilidade social em sede de concertação. E aí o nosso propósito é estabelecermos um acordo de competitividade e rendimento para a legislatura, que, em quatro anos, por cada Orçamento do Estado [OE], vá ‘fatiando’ condições de redução dos custos de contexto – desde logo a melhoria do quadro fiscal, a desburocratização e a simplificação, tendo como fundamento legislação própria para licenciamentos mais expeditos e, numa perspectiva global, para a concretização de um Simplex continuado, agilizando e removendo os obstáculos que se colocam ao nosso desenvolvimento económico.

Temos calendário para a formulação dessa proposta de acordo?

Apontamos para o início de Outubro, coincidindo com a apresentação do OE, que, no nosso entendimento, deverá carrear algumas das matérias que se consigam plasmar no acordo social, tendo em vista melhorar os factores de competitividade e, a partir daí, assegurar condições para melhorias salariais sustentáveis. Porque não me serve de nada aumentar o salário mínimo para os valores que vierem a ser definidos, se as empresas, depois, não tiverem condições de os pagar. Por isso é que defendemos um acordo de competitividade e rendimentos – ou seja, melhorar os factores de competitividade e, com eles, melhorar os rendimentos.

A quatro anos porquê?

Roma e Pavia não se fizeram num dia... E ‘fatiando’ em quatro – uma ‘fatia’ por cada OE – estamos disponíveis para definir desde já, em sede de concertação social, o referido acordo que permitirá as empresas, sustentadamente, melhorarem as suas políticas salariais.

Quando fala em política salarial, quer dizer…

Refiro-me aos vencimentos em geral, ordenado mínimo incluído – mas não só. Temos de levar em conta as outras realidades salariais, criando simultaneamente condições às empresas para a redução dos seus custos de contexto. Retomo a questão dos custos energéticos para dizer o seguinte: as empresas perderam, abruptamente, as suas margens; as que antes pagavam uma factura mensal de 80-90-100 mil euros de consumo de gás natural passaram para 800-900 mil… Estou a falar de uma determinada tipologia e dimensão de empresas. Mas se formos para escalas mais pequenas, aquelas que pagavam 10 mil euros têm hoje uma factura de 50-60 mil… Na comercialização dos produtos ou dos serviços, não há margem que absorva este aumento do custo energético. Se somarmos as despesas com transporte – por exemplo, um contentor proveniente de um país asiático tendo Amesterdão como destino viu os seus custos aumentarem sete-oito vezes –, o preço dos combustíveis, as matérias-primas associadas ao sector das cerâmicas, ao vidro ou ao têxtil…num curto espaço de três meses formou-se a referida ‘tempestade perfeita’.

A acomodação desses custos afecta, e de que maneira, as margens de comercialização…

Claro que sim, sendo certo que as empresas não puderam repercutir, a não ser numa pequena parcela, este fortíssimo incremento sob pena de a inflação se tornar insustentável. Por isso é que os apoios públicos têm de chegar às empresas – da mesma maneira que o Governo diz, e concordo, que não podemos deixar ninguém para trás em termos sociais, também não podemos deixar ninguém para trás em termos empresariais. Não estamos, sublinho, perante uma questão política; objectivamente, trata-se de uma questão de realismo. Este é o pano de fundo que temos pela frente, as ameaças estão aí, aquelas que já estão identificadas e aquelas que antevemos, mas ainda não estão declaradas. Vejamos o problema gigantesco da seca. Temos de ser muito ágeis a atacar o problema da falta de água e não tenhamos reticências em seguir os bons exemplos. Como o que vem de Espanha, onde já estão a ser instaladas centrais de dessalinização – nós, deste lado de cá da fronteira, ainda estamos a pensar num protótipo para Castro Marim, como backup, mas não sabemos se isso vai servir e em que medida fará face às necessidades… e o relógio não pára. Não estou a ser profeta da desgraça, contudo, a realidade é que estamos com graves problemas porque o ciclo da água parou. E vai estar parado durante um tempo cujo prazo não conseguimos estimar. Entretanto, a agricultura consome 70% da água de que o País necessita e temos de o abastecer. Pois que esse abastecimento se faça através das fontes que temos, libertando para consumo humano a água obtida por via da dessalinização. Este mix é absolutamente vital.

Como olha para o sector financeiro nesta grande equação?

Depois dos traumas por que passou, o sector financeiro está hoje mais robusto, mais estruturado, com indicadores mais satisfatórios. E para uma economia que se foi habituando ao longo dos anos – mal, enfatizo – a crédito fácil, barato e abundante, com condições de exigência não muito fortes, os moldes de concessão desse financiamento, de repente, deixaram de existir. Sucede que a estrutura de capitais próprios de muitas das nossas empresas é pobre. Comparamos mal com as congéneres europeias. Além disso, o nosso tecido empresarial está muito pulverizado – mais de 90% das empresas portuguesas emprega até dez trabalhadores; e de um milhão e duzentas mil que entregam o IES [Informação Empresarial Simplificada], pouco mais de um milhão é representado por micro empresas, cerca de 42 mil são médias e as grandes não excedem as seis mil. Estamos a falar de um universo muito descapitalizado, que – volto a frisar – estava até aqui habituado a aceder com facilidade a capital alheio, à luz de regras de regulação e de supervisão que já não são as mesmas, sendo o risco agora muito mais apurado. E por isso temos um sector financeiro mais robusto, mais capaz, mas cedendo crédito de acordo com critérios muitíssimo estreitos. Para uma economia que estava – reforço – habituada a outra agilidade, estamos a passar por dores de adaptação. E a Banca tem de voltar a ser um parceiro de risco, na certeza de que não há empresas sem risco, está no seu ADN. É preciso criar condições para que o tecido empresarial – falo daquele que necessita – possa reforçar os seus capitais, estimulando o reinvestimento de lucros investidos. Por outras palavras, temos de encontrar o ponto de equilíbrio entre os dois parceiros: considerando que a Banca está mais reforçada e o sistema financeiro melhor preparado, também por isso devem – com a devida prudência, é certo – voltar a olhar para as empresas como o seu natural parceiro de risco.

Que mensagem realista gostaria de dirigir aos empresários portugueses que nos estão a ler?

Sendo também realistas, como não podem deixar de ser, que mantenham viva a esperança. Bem sabemos que os tempos não estão fáceis, é um facto. Reduzam dívida o mais possível, façam investimentos ponderados, procurem fontes energéticas alternativas e não privilegiem apenas uma delas – há, por exemplo, sectores que devem ir para a biomassa. No propósito de conferirem maior robustez às suas empresas, importa continuarem a apostar na qualidade, na inovação e na diferenciação, porque é isso justamente que as distingue. Na melhor tradição das Descobertas, a nossa resiliência muito terá a ganhar se formos capazes de continuar a abrir novos horizontes além da Europa. Porque, em boa verdade, Portugal tem tudo a ver com o Mundo.